Aula Programada: academia deve refletir sobre o conceito de qualidade, alerta historiadora Maria Lima

Maria Lima defende conceito de qualidade social vinculado ao Estado Público

Frente à indagação sobre a qualidade dos serviços ofertados à comunidade estudantil no primeiro semestre de 2020, a professora e coordenadora do  Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Ensino de História e Práticas de Linguagem: Currículo, História e Cultura (GEPEH/UFMS), Maria Aparecida Lima dos Santos,  destaca que é preciso esclarecer de que qualidade se está falando.

Para a docente, a qualidade social, indicador elaborado pelos movimentos sociais e sindical e de professores da Educação Básica e do Ensino Superior, insere a universidade no modelo que entende o Estado como bem público, que deve ser conduzido através de gestão democrática, objetivando prioritariamente atender as necessidades sociais. Este parâmetro, acrescenta a docente, serve para questionar o elemento da qualidade dos serviços ofertados à comunidade na atual conjuntura.

A partir desta narrativa, pondera sobre o que é preciso considerar quando estamos falando de qualidade, uma vez que esse significante, na sua opinião, tem sido utilizado em nossa universidade em um sentido que visa reafirmar projetos contrários ao modelo defendido pela categoria (aquele da qualidade social).  

O conceito de qualidade social de acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Básica (DCN/2010), por exemplo, inclui a qualidade pedagógica e a qualidade política. Ambas requerem compromisso com a permanência do estudante na escola, sucesso e valorização dos profissionais da educação. Além disso, concebem a qualidade na escola como qualidade social que se conquista por meio de acordo coletivo, e, por isso, implicam em projetos avaliativos comprometidos com a aprendizagem dos estudantes, interpenetrados ao longo do processo didático pedagógico, orientado pelo desenvolvimento do conhecimento, dos saberes construídos históricos e socialmente.  

Maria Lima destaca que o objetivo maior da atual gestão, longe de pautar-se pela qualidade social, está fundamentado em produzir números orientados por resultados, dentro uma lógica de princípios gerencialistas, cujo mote primordial é produzir para um certo mercado.  Neste contexto, explica, passa para o segundo plano, por exemplo, a produção do conhecimento que critica e intervenha nas relações de desigualdades presentes em nossa sociedade.

Para exemplificar a oposição de sentidos associados ao significante qualidade, menciona a preocupação em demasia da atual gestão com o “preenchimento” do PDU (Plano de Desenvolvimento da Unidade – PDU 2020/2024) e o PDI (Plano de Desenvolvimento Institucional), planejamentos pré-formatados, que oferecem pouca (ou quase nenhuma) margem de autoria aos docentes ou de fomento à reflexão sobre suas próprias realidades, mas que servem, em essência, para disseminar a lógica que se tenta impor na administração do bem público (aquela da qualidade total).  

Explica que essas ferramentas são instrumentos do MEC utilizados pela atual gestão, extremamente alinhada com o projeto político do atual Governo, o qual incorpora princípios de gestão estruturados a partir das diretivas de organismos internacionais que vêm implantando a ideia de educação como mercadoria desde dos meados da década de 1960, em todo o mundo.

Neste ângulo, a docente avalia que há um reposicionamento do que se entende por qualidade, excluindo a dimensão política e recontextualizando todas as pautas sociais no significante qualidade total, concepção que fundamenta o atual projeto da universidade brasileira como um todo e que defende o sucateamento do serviço público, a restrição orçamentária, o foco na formação para um certo mercado através da manutenção do funcionamento da máquina de produção de resultados, características básicas do modelo gerencialistas.

Feita esta distinção, para Maria Lima torna-se possível avaliar a qualidade ensino remoto. Se tomarmos o prisma gerencialista, pode-se afirmar que a qualidade foi garantida no primeiro semestre, pois os professores continuaram trabalhando e os alunos puderam assistir aulas mesmo com limitações. “Embora deficitária, a “engrenagem” continuou funcionando, garantindo que os sistemas fossem preenchidos de forma a alimentar a máquina de produção de resultados. Essa concepção revela uma orientação guiada pela quantrofrenia, ou seja, a febre por números da aritmética política, que substituiu por descrições numéricas as narrativas qualitativas provenientes da economia, da demografia e da administração do Estado”, critica.

A pesquisadora social explica que a quantrofrenia caracteriza a análise dos cientistas sociais em analisar o mundo por meio dos números e das estatísticas. Dentro deste padrão não importa o que pensam os sujeitos envolvidos.  Importa o que pensa o comando da administração, da chefia. O debate público efetivo, a análise, neste modelo ter que ser evitado, porque se gera a atraso na produção dos números que irão comprovar o atingimento de metas a qualquer custo.

O modelo gerencialista, opina Maria Lima, sem sombra de dúvida traz para os sujeitos que comandam o processo benesses de dimensões políticas e econômicas frente aos organismos internacionais como o Banco Mundial, por exemplo, que desde 1980 financia uma série de ações de implementação de políticas educacionais em todo o mundo, processo que caracteriza o projeto de transformar a educação em negócio na sua mais pura acepção.

Um exemplo de como é preciso se esclarecer de que qualidade se está falando para não se tornar presa das falácias contidas nas narrativas produzidas pela atual gestão é o atendimento às necessidades dos estudantes.  É visível que não há quadro administrativo em número suficiente para apoiar políticas assistenciais na universidade. “Desta forma, é preciso contar com a boa vontade dos administrativos e docentes para trabalhar 24 horas por dia e dar contar de números poucos significativos em meio a tantos alunos que precisam de assistência”. Mas ao atender esse pequeno número, a Reitoria não pode ser questionada, pois sua ação (extremamente deficitária do ponto de vista da qualidade social, mas efetiva do ponto de vista da qualidade total) garante que afirme não estar ferindo preceitos constitucionais de atendimento às necessidades de assistência. Isso é fundamental, pois estamos falando aqui de prestar contas à sociedade sobre o uso de recursos federais destinados a esse fim.

O funcionamento destas artimanhas ficou evidente frente ao resultado da ação que a ADUFMS moveu contra a UFMS. “O próprio marco legal, utilizado pela Reitoria para afirmar sua ideia de qualidade, devia ser questionado fundamentando-se o conceito de qualidade. O significante foi apropriado pelo sentido de qualidade da Reitoria e em torno dele houve construção do consenso que precisava junto ao Ministério Público. Mais uma derrota no campo discursivo que, em si, é um campo político de disputas, como ficou comprovado”.       

Agindo dentro desta chave, a narrativa criada posicionou a qualidade na concepção gerencialista e usou o MP para “calar a boca” da oposição.  “O que vemos é um jogo. Ao mesmo tempo que se dissemina a ideia de atendimento, cria-se uma cortina de fumaça que dificulta o trabalho de resistência, pois quando afirmamos que os estudantes não estão recebendo o serviço constitucionalmente garantido (com base no conceito de qualidade social), a narrativa oficial apresenta os números que coleta nos sistemas (que nós preenchemos e, portanto, referendamos) e afirma que está atendendo as necessidades dos alunos (do ponto de vista da qualidade total). Em termos estruturais, utilizam-se da mídia para dizer que estão atendendo, liderando e amarando as narrativas”.

Essas estratégias, na conclusão de Maria Lima, não são devidamente compreendidas pelos setores progressistas, que não enxergam essas nuances para poder constituir narrativas fundamentadas nos projetos pautados pela qualidade social e ficam como formigas aprisionadas em um labirinto voltando sempre ao mesmo lugar, como a figura que Escher[1] nos mostra. “A narrativa deles circula na sociedade e tem alto índice de atingimento, enquanto a da resistência tem baixíssimo alcance, além de ser frequentemente desqualificada pela associação de sua crítica a termos como alarmista, persecutória, disseminadora de teorias da conspiração, endemonizadora etc.  Acaba-se, portanto, perdendo a guerra neste campo, devido, principalmente, ao apoio que encontram na mídia hegemônica”.  

Möbius Strip II (Red Ants) woodcut (1963) | genderandsexuality360

M.C. Escher, “Möbius Strip II (Red Ants)” (1963), Xilogravura, 435 x

205 mm. Retirado de https://mathstat.slu.edu/escher

Aponta como exemplo a reforma administrativa, que acontece de maneira avassaladora. “É dentro deste contexto de artimanhas discursivas como parte do jogo político de poder que o Ministro da Fazenda diz que funcionário público é vagabundo, narrativa implantada há mais de 30 anos que vai, de tanto repetida, tornando-se uma ‘verdade’, chegando a ser proferida pelos próprios funcionários públicos e colaborando na desestruturação do bem público, processo que não é percebido pela população”, complementa.

Para Maria Lima, com base no conceito de qualidade social, é evidente que a condução das aulas no primeiro semestre foi violenta, desestruturadora da ordem institucional, pois os sujeitos, fundamentais para o ato educativo e formação de qualidade ocorra, foram completamente objetificados. Não importa sua saúde, não importam suas opiniões. São tratados como elementos secundários, terciários ou sequer tratados. A passagem direta do primeiro semestre para o segundo semestre, sem nenhum intervalo para planejamento coletivo, sem preparação dos professores e alunos para lidarem com o mundo virtual foi extremamente irresponsável e evidenciou a desconsideração da dimensão humana e política dentro da instituição educacional, elemento muito grave se consideramos o Estado como Bem Comum.

Sugere que seria necessário um período de preparação de ao menos 30 dias para que a transição fosse feita, a exemplo da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS). A medida, para educadora, seria fundamental para se fazer um balanço, considerar as questões pedagógicas e de acesso às novas tecnologias para que estudantes e professores(as) fossem habilitados a trabalhar com as ferramentas. “O processo começou com atropelo, com a lógica de ensino remoto totalmente imposta, e uma confusão, dentro do próprio movimento de trabalhadores em Educação, entre ensino remoto e Educação a Distância. O fato exemplifica como as maneiras com se trata as questões educacionais são aligeiradas, com pouca fundamentação, desconsiderando-se os profissionais da Educação dentro da Universidade de maneira generalizada, aspecto, a meu ver, extremamente grave”.

Maria Lima vê a Educação e as produções deste campo de pesquisa ocupar, nas narrativas dos professores universitários e no movimento organizado dos sindicatos, um papel secundário. Essa subalternização materializa-se no cotidiano na resistência dos alunos/as das licenciaturas, por exemplo, que olham a dimensão pedagógica do currículo como objeto de segunda classe. Isto acontece no país inteiro e, infelizmente, na UFMS também, e penso que, se houvesse espaço para reflexão sobre as questões educacionais de maneira fundamentada, não passaríamos pelo que estamos passando, pois há muita produção intelectual no campo da Educação que fornece instrumental para enfrentarmos essa situação e superá-la”.  

“Fortalecer as discussões teóricas no campo da Educação é crucial”, conclui.

Assessoria de imprensa da ADUFMS

[1]