A situação dos estudantes indígenas em universidades federais é delicada, porque envolve fatores diversos, como a dificuldade de aprendizagem da língua local, a falta de perspectiva de como se manter na graduação e a adequação à vida social urbana. Outro ponto notório é a realidade dos indígenas que vivem no perímetro urbano. Estes acabam enfrentando um processo grave de apagamento identitário, muito por conta do preconceito exercido pela população da cidade.
Apesar dessas situações, existem histórias que podem servir de exemplo para tantos indígenas presentes na universidade. Uma delas é da estudante Susan Eloy Terena, de 32 anos, que ingressou no mestrado de Antropologia em 2024, com o tema “Retomada identitária: experiências e percepções sobre a construção de um pertencer” e que agora recebeu a oportunidade de levar e trocar suas vivências e conhecimentos com estudantes na Colômbia através de um mestrado sanduíche.
Identidade descoberta na fase adulta
“Eu me compreendi como pessoa indígena agora, já na fase adulta, aos 30 anos.” A frase de Susan Terena resume parte de um percurso marcado pela negação identitária, pela resistência e, mais recentemente, pelo desejo de honrar seus ancestrais dentro da academia.
A caminhada acadêmica de Susan começou cedo. Em 2011, aos 18 anos, ingressou em Administração na UNIDERP, conciliando os estudos com uma rotina exaustiva de trabalho. “Sempre trabalhei como estagiária na parte de auxiliar-administrativo, trabalhava em lanchonetes à noite e de madrugada eu fazia freelance em food-trucks para poder pagar a faculdade.” Concluiu a graduação em 2015 e, logo em seguida, iniciou uma especialização em Contadoria e Finanças.

Mesmo antes de compreender sua identidade indígena, Susan já se deparava com o peso do preconceito. “Sempre observei essa diferença de cor da pele, dos traços que a gente chama na antropologia de traços diacríticos e acabei recebendo comentários sobre ter ‘cara de índio’, ser ‘bugre’, esses termos pejorativos que costumam usar.” As discriminações se refletiam inclusive no mercado de trabalho. “Não fui contratada, na primeira vez em que tive a oportunidade de exercer um cargo em um banco como estagiária, justamente por conta do racismo”, conta.
O reencontro
O ritmo intenso de trabalho e estudo, aliado às pressões do cotidiano urbano, despertaram nela uma inquietação sobre o sentido da vida. “Será que a vida é só trabalhar, pagar boleto e esperar aposentadoria?”, questionava-se. Foi nesse período que os sonhos com a avó paterna, a quem conhecera apenas aos sete anos, começaram a se repetir. “Sonhei com ela, onde ela me dizia coisas que me deixavam inquieta e aumentavam meu desejo por saber do meu passado.”
O reencontro com a família paterna, após mais de 20 anos, foi decisivo. “Chegando lá, eu vi minha vó do mesmo jeito que eu vi no sonho. Estando lá eu encontrei o real sentido da minha vida, quando eu questionei meu pai sobre nossas raízes e ele, com muito medo, falou: Olha… sim, minha filha, nós somos tudo índio”, conta.
Esse momento marcou o início de uma retomada identitária. Susan descobriu que seus avós haviam vivido na aldeia Cachoeirinha, em Miranda (MS), mas que, depois de um tempo, migraram para Campo Grande em busca de melhores condições. Seu pai acabou prestando serviços análogos à escravidão em uma fazenda próxima de Miranda. Mais tarde ela compreendeu que o silêncio sobre a origem indígena tinha relação com uma estratégia dolorosa de sobrevivência diante do preconceito. “Nós temos dados históricos e autores que falam sobre isso, dizendo que quando os povos originários vêm para a cidade, para se ter uma maior aceitação, sofrer menos preconceito, acabam omitindo suas reais etnias, não falam sua língua materna por vergonha, por preconceito das pessoas não-indígenas à nossa cultura”, explica a futura antropóloga.
Ingresso no mestrado e a autoetnografia
Em 2023, o reencontro com as raízes levou Susan a buscar espaço na academia para narrar essa história. “Mandei um e-mail para o professor Antônio Hilário pedindo desesperadamente para que eu pudesse contar essa história, que eu poderia entrar na academia para contar ela.” Assim, ingressou como aluna especial no mestrado em Antropologia da UFMS, utilizando a autoetnografia como método. “[Por meio do método] É onde eu posso expressar a questão da minha vida, dos sentimentos, cotidiano, daquele trabalho de campo todo que a antropologia exige mas falando da minha vida, é um relato pessoal mas é um olhar científico também”, explica Susan.
Atualmente, ela está na reta final da pesquisa. “Entrei na primeira turma de 2024 e vou finalizar no ano que vem.” A trajetória ganhou um novo capítulo quando surgiu a oportunidade de um intercâmbio acadêmico. “Quando achei que já tinha terminado todas as emoções que o mestrado poderia me proporcionar, me veio uma ligação do meu orientador mandando a oportunidade do mestrado sanduíche através da professora Eugênia Portela.”
Oportunidade na Colômbia
A professora Eugênia Portela, da Faculdade de Educação da UFMS (FAED), aprovou em 2023 o edital Abdias do Nascimento, que garante bolsas de mestrado e doutorado sanduíche na Universidade de La Guajira, no distrito de Riohohacha. O edital já contemplou uma bolsista que está na Colômbia desde junho e mais três estudantes, incluindo Susan, irão ainda este ano. Cada bolsa é de US$ 1.300,00 mensais, para pesquisas de quatro a dez meses.

Susan, indicada ao programa, ficou receosa no começo, mas não deixou a oportunidade escapar. “Fiquei com medo, mas decidi me jogar porque acho que é uma oportunidade única na academia. Me recordo que lá no começo, quando terminei minha primeira graduação, o meu grande sonho era de fazer um mestrado e depois um doutorado sanduíche, nem sabia que poderia fazer um mestrado sanduíche, então é uma antecipação de um sonho que eu tenho.”
Identidade Terena além das fronteiras
Na Universidad de La Guajira, onde mais de 40% dos acadêmicos são indígenas, Susan terá contato com o povo Wayuu, maior grupo indígena da Colômbia e da Venezuela (Dados do Censo 2018, realizado pelo Departamento Administrativo Nacional de Estatística (DANE), indicam que 147.510 pessoas se autorreconhecem como Wayuu) . “Fazer esse paralelo, este contraponto de estar também vivenciando com os indígenas de lá, é maravilhoso. Minha identidade Terena não vai passar despercebida lá, até porque estou me preparando para levar algumas artes daqui, levar algumas cerâmicas Terena e as bonecas feitas pela minha etnia para dar de presente para eles, falar sobre a cultura Terena, não apenas dela mas também das oito etnias que compõem o estado de Mato Grosso do Sul (Guarani, Kaiowá, Terena, Kadiwéu, Kinikinaw, Atikun, Ofaié e Guató).”

Ela também pretende compartilhar experiências sobre políticas de acolhimento universitário, comparando a realidade da UFMS com a da instituição colombiana. E levar consigo os aprendizados acumulados ao longo de sua pesquisa: “Tudo que aprendi diante de toda essa trajetória que participei do mestrado, de todos os movimentos indígenas que participei, de todas as falas das anciãs e anciãos e todo o respeito que me foi ensinado.”
Planos futuros e legado
Susan já projeta o futuro. “Acabei me apaixonando por isso e então eu tenho o planejamento futuro de continuar na academia, prosseguir com o doutorado, partindo da mesma temática e um que tenha a possibilidade de fazer o sanduíche também. Quero continuar sendo essa indígena, antropóloga e pesquisadora e também quero poder continuar dando exemplo a todos os indígenas que estão dentro da UFMS, aos que conheci também, através da universidade, por meio do Núcleo de Permanência Indígena, que é a Rede de Saberes.”

No plano nacional, ela pretende aprofundar o debate sobre retomada identitária, tema que já vem abordando em artigos, palestras e redes sociais. Para Susan, a discussão é urgente e diz respeito a toda a sociedade.
A estudante também deixa uma mensagem para jovens indígenas que, como ela, enfrentam dificuldades para permanecer na universidade. Ela defende que a academia seja um espaço de pluralidade, capaz de considerar saberes que os povos originários carregam, como a oralidade, dentro da produção científica. A trajetória de Susan mostra que resistir é parte essencial do processo, mas também que é possível transformar a universidade em um espaço mais diverso e representativo.