Estado é um dos líderes em violência contra a mulher no Brasil
Mato Grosso do Sul é uma das unidades da Federação que mais registra casos de violência contra a mulher no Brasil. Há mais de uma década, o estado tem mantido essa posição lamentável, oscilando entre os primeiros lugares em relação a feminicídio e agressão doméstica, sem contar os casos não notificados.
De acordo com a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp-MS), a Polícia atendeu a 8.712 denúncias de violência de gênero entre janeiro e maio de 2022, uma média de dois casos a cada hora. Já o relatório “Violência Contra as Mulheres” de 2021 aponta que MS teve uma média superior à nacional em casos de feminicídio no ano passado (2,6 em cada 100 mil), mesmo tendo diminuído 14% em relação a 2020.
Um conjunto de fatores pode ser responsável pelos dados relativos à violência de gênero em MS. A naturalização dos casos e a pouca representatividade de mulheres é um dos motivos. O ex-prefeito de Campo Grande, Marcos Marcello Trad, por exemplo, foi denunciado por quatro mulheres que relataram acusações parecidas de assédio sexual. Na mesma cidade, a Câmara de Vereadores tem uma única membro mulher, Camila Jara (PT). Na Assembleia Legislativa do estado, também há apenas uma parlamentar mulher, a deputada Mara Caseiro (PSDB).
Na segunda semana de julho, uma postagem do acadêmico Lucas Müller, que estuda Medicina na UFMS, tomou repercussão nacional por debochar de um poema da artista e escritora Tracy Figg, no qual a autora trata dos temas de feminicídio e estupro, e se referia a um médico anestesista preso em flagrante por estuprar uma paciente. O texto original diz: “nem todo homem, mas sempre um homem”. Já Lucas fez uma analogia com casos de trânsito, reforçando o estereótipo de que mulheres não sabem conduzir automóveis, finalizando com “nem toda mulher, mas sempre uma mulher”. A Associação Atlética de Medicina da UFMS publicou uma nota em que repudia a fala, enquanto a Universidade afirmou que deve apurar a conduta do estudante.
Medidas para conscientização
A professora Dra. Constantina Xavier, que leciona na Faculdade de Educação (Faed/UFMS) e é coordenadora do Grupo Grupo de Estudos e Pesquisas em Sexualidades, Educação e Gênero (GepSex), afirma que a repercussão dos casos ajuda mulheres a tomar coragem para denunciar os agressores. “Essa é uma questão que causa muita culpa às mulheres. A própria vítima se sente muito mal nessas situações e precisa ser encorajada a denunciar. Esses fatos, embora sejam tenebrosos, nos fazem pensar e dão a essas mulheres a coragem, a condição de ser respeitada, seja nos órgãos competentes, seja falando abertamente sobre as situações”.
Constantina comenta que o caso de Lucas Müller demonstra uma falta de consciência sobre a violência estrutural. “É muito interessante o quanto um jovem do gênero masculino se sentiu ofendido com esse posicionamento, mas a questão é: como a gente pode trazer esses questionamentos para a universidade nos mais diversos cursos? No caso do curso de Pedagogia, temos uma disciplina obrigatória chamada Gênero, Sexualidade e Educação, que apesar de não resolver essas questões tão naturalizadas, já é um espaço de reflexão e legitimação dessa temática na estrutura curricular”.
Para a professora, a conscientização deve vir desde a educação básica. “Essas discussões deveriam acontecer em toda graduação, sobretudo nas que vão lidar com o ser humano – como Medicina –, mas em qualquer das áreas, essas temáticas têm que ser discutidas, para que o aluno possa refletir sobre essas situações, pensar nessas violências que são estruturais. Estamos falando não do homem ‘A’ ou ‘B’, mas de violências históricas e culturais que acabam por marcar sujeitos, a partir de diferenças, e no caso estamos falando da subjugação da mulher perante o homem”, afirma.
A pesquisadora também explica que a violência e a violação dos direitos não atingem apenas mulheres, mas toda população que está em vulnerabilidade em relação a homens heterossexuais. “O estado do Mato Grosso do Sul tem altos índices de violência contra a mulher e também de homofobia. A violência de gênero também afeta a população LGBTQIAP+. Essas violações atacam não só as mulheres, cis e transgênero, mas também são muito ruins para o estado. Não são só mulheres violadas, mas também crianças, por exemplo”.
Para que esses casos sejam denunciados e também evitados, Constantina destaca o papel da educação sexual, tema censurado por adeptos do ultraconservadorismo ligados ao atual governo brasileiro. “Isso tem que ser discutido nas universidades, nos projetos de extensão, e aí entramos em outra questão, que são essas políticas anti-gênero que querem calar e negar essas discussões nas escolas. Quando se fala em direitos humanos, violência de gênero, estupro e tudo mais, essa é uma discussão que deveria ser feita e problematizada nas escolas”.
“Infelizmente, esse momento tão triste, com situações que nos abalam, que nos constrangem, deixam perplexas e revoltadas, é o momento também de trazer à tona essa reflexão e falar da importância da sexualidade, gênero e direitos humanos nas práticas escolares, na educação básica como um todo e também nas universidades, nas suas práticas curriculares e pedagógicas”, finaliza a professora.
A professora Dra. Mariana Esteves, docente adjunta no Campus Três Lagoas (CPTL/UFMS), aponta que as comoções com casos de violência contra a mulher não podem ser separadas do processo de conscientização e que é necessário monitorar grupos que exaltam tal prática. “Há um aspecto muito perverso na misoginia e na violência de gênero. Existem pessoas que, alimentadas pelo ressentimento com o levante das mulheres, realizam mais e mais atos de violência.
Vemos que, quanto mais nos levantamos, isso não indica que os casos diminuam. A conscientização que a comoção realiza se dá a nível coletivo, mas não significa que em eventuais grupos não gere mais ódio”. Mariana explica que o clima político de crítica ao feminismo, além da visibilidade e eleição de figuras que promovem um discurso misógino, fortalecem o comportamento violento. “A violência de gênero tem muito a ver com ódio de gênero. Recentemente, com o empoderamento de sujeitos que representam esse ódio, os casos não só ficaram mais corriqueiros, com mais assiduidade, como há grupos que sentem um certo tipo de orgulho de anunciar que realizam essa violência. Porque do ponto de vista político, esses sujeitos são protegidos”.
A pesquisadora destaca que, mesmo durante as gestões de centro-esquerda, o Brasil não contou com uma política que focasse na educação de gênero e na informação. “Quando tivemos políticas mais progressistas, contraditoriamente tivemos pouca conscientização, pouca educação política. Nós fomos ter um processo maior de conscientização no bojo das Jornadas de Junho de 2013, mas ele foi muito capturado pela direita. Tem sido exigido das instituições, dos sujeitos e dos debates mais progressistas uma energia descomunal, porque ela foi capturada, inclusive com mediação das redes sociais e com um uso muito fomentado nas redes sociais”, afirma. “Se fundamentalmente voltarmos a um projeto político progressista, precisamos criar uma educação realmente politizada, não só abrir espaço de crédito ou de consumo”.
Mariana também afirma que se faz necessária uma presença maior das ciências humanas nas grades curriculares das escolas. “Em vez de diminuir as aulas de História e Geografia, que isso fosse revertido, que o aumento das aulas de Filosofia, de História, Sociologia e Geografia ganhasse força, e não o movimento inverso, enquanto a BNCC e a Reforma do Ensino Médio têm propensões muito mais voltadas ao mercado, à mão de obra e não para homens e mulheres na cultura de paz”.
Casa da Mulher Brasileira
Com sua primeira unidade inaugurada em Campo Grande, em 2015, durante o segundo mandato de Dilma Rousseff (PT), a Casa da Mulher Brasileira é um local para a ampliação do enfrentamento à violência de gênero, com espaços para denúncia, acolhimento, capacitação e encaminhamento. A capital sul-mato-grossense foi escolhida devido aos índices superiores à média do país.
De acordo com a instituição, ela reúne em um mesmo espaço (I) Juizado Especial voltado para o atendimento a mulher; (II) Núcleo Especializado da Promotoria, (III) Núcleo Especializado da Defensoria Pública, (IV) Delegacia Especializada no Atendimento a Mulher, (V) Alojamento de passagem, (VI) Brinquedoteca,(VII) Apoio psicossocial, e (VIII) Capacitação para a sua autonomia econômica.
Mariana Esteves destaca o papel importante da Casa para o processo de superação dos dados de violência. “É necessária a ampliação da Casa da Mulher Brasileira – e Campo Grande já é uma das poucas capitais que têm uma unidade e que recebeu uma atenção especial, porque a ex-secretária de Violência contra Mulheres do governo Dilma foi Aparecida Gonçalves, que atuou por muito tempo em Campo Grande”.
A professora propõe que a instituição não sirva apenas para receber vítimas, mas também para educação, evitando casos futuros. “Que isso se estenda para outras cidades, outros estados, não só como um lugar que recebe e acolhe, de forma bastante completa, mas que também possa se estender do ponto de vista educativo e transformador, para receber homens e mulheres que não praticam violência, mas que se eduquem”.
Por Norberto Liberator (Assessoria de Comunicação – Adufms)