Bolsonaro ‘ressuscita’ organização social para Ifes, proposta de FHC

Carolina Gabas: "Modelo de OS que faz intermediação tem sido adotado [ou tentado] em alguns estados"  – Foto: Carolina Gabas Stuchi 

 O GOVERNO BOLSONARO  repagina, por meio do Programa Universidades e Institutos Empreendedores e Inovadores (Future-se), proposta do primeiro governo de FHC (Fernando Henrique Cardoso) em 1995 para instituições públicas de ensino superior, pesquisa e extensão: a gestão por organizações sociais (OS), cuja prática motiva controvérsias na governança e aplicação de fundos públicos.  A transferência da gestão das universidades públicas para OS é algo que ainda não existe em termos práticos, embora tenham havido iniciativas propostas e aplicadas em redes estaduais de educação básica.  Explica a docente da Universidade Federal do ABC (UFABC), Carolina Gabas Stuchi, doutora em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP):

Esse modelo de OS que faz intermediação tem sido adotado [ou tentado] em alguns estados – de acordo com levantamento que fiz, nos estados de Goiás e da Paraíba. Nas secretarias estaduais de educação chegaram a abrir esse chamamento, um processo de seleção, para convocar essas organizações sociais no âmbito dos estados, para gerir as escolas públicas da rede estadual (STUCHI, 2019a). 

Pesquisadora dos temas “Estado, Constituição e Democracia; Instituições Judiciais e judicialização de políticas públicas; Política de Assistência Social; e Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC)”, Carolina Gabas considera as OS como instituições privadas que não são iguais conceitual e juridicamente em todas as unidades da Federação brasileira. “É um desenho bastante questionável. A diferença é que cada estado tem uma legislação sobre organizações sociais” (STUCHI, 2019a). Ela (STUCHI, 2019a) complementa:  “Existe uma qualificação. Quem considera uma entidade organização social é o poder público. No caso do governo federal são os ministérios que geralmente querem contratar. Hoje a gente tem organizações sociais qualificadas pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, [Inovações e Comunicações], pelo Ministério da Educação. Eles firmam contrato de gestão com essas OS”. 

A docente da UFABC aponta semelhança entre o modelo de OS da Paraíba e de Goiás, ambos na educação básica, com o que está esboçado pelo governo federal em relação ao Future-se. Em Goiás o Poder Executivo intentou implantar em 200 escolas da rede estadual as organizações sociais. Posteriormente reduziu para 23 as unidades escolares em que seria implantado OS por meio de gestão compartilhada com a Secretaria de Estado de Educação, Cultura e Esporte (Seduce). O Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO), o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público de Contas de Goiás (MPC-GO) manifestaram pedindo à Seduce que adiasse o edital 1/2016, por haver dúvidas em relação a preceitos legais, incluindo princípios constitucionais federal e estadual.  “[…] Transferir a gestão de escolas da rede pública a Organizações Sociais tem provocado muita polêmica na sociedade goiana” (KREBS; RORIZ; AVELAR; BARBOSA, 2016, p. 1),  argumentam MP-GO, MPF e MPC-GO. Continuou o impasse. Dessa vez em relação ao edital 3/2016, direcionado a contratar OS para escolas estaduais na região de Anápolis (GO). A partir de ação do MP-GO, a Justiça suspendeu esse chamamento. "Entre as diversas irregularidades observadas estavam a ausência do princípio da gestão democrática do ensino, a possibilidade do uso indevido de recursos do Fundeb, o prazo excessivo dos contratos a serem firmados (12 anos no total), os valores por alunos díspares no edital, além da ausência do devido credenciamento e idoneidade das OSs até então selecionadas" (ROSA, 2017). 

O trâmite administrativo para adoção do modo compartilhado de gerir a educação pública em Goiás continha pontos nebulosos e suscitou contrariedades. “Tem tantas irregularidades no próprio processo, no próprio modelo, que ele acaba sendo questionado e tem resistência tanto da comunidade escolar, professores, quanto do próprio Ministério Público”, observa a pesquisadora Carolina Gabas (STUCHI, 2019a). A repercussão na imprensa goiana suscitou críticas a respeito da idoneidade das organizações sociais. “Essas OSs, na verdade, são laranjas de políticos que querem desviar dinheiro público” (SANTANA, 2017),  comentou um leitor em notícia  on-line  sobre o assunto

A tentativa de implantação de organização social em escolas públicas de Goiás teve resistência por parte de setores da população. “[…] Há muitas incertezas e incoerências no processo de implantação da gestão compartilhada através da OSE [Organização Social de Educação] na educação básica, especificamente, no que se refere ao seu financiamento” (SOUZA; FLORES, 2018, p. 798).

Na Paraíba a implantação da gestão da educação básica para OS superou a fase de editais e das controvérsias. O sistema foi adotado em unidades da rede de educação daquele estado sob o questionável argumento de que o modo OS cuidaria somente das funções-meio das escolas. "[…] Tem uma parte da rede pública sendo gerida por OS. Essas OS absorvem uma parte das atividades que antes eram executadas diretamente pela escola, sob a justificativa de que parte das atividades supostamente não são pedagógicas, como se a gente conseguisse partir essas atividades da escola" (STUCHI, 2019b). Aponta-se contradição na contratação de OS no Estado da Paraíba: uma governança híbrida, o que pode esconder atividades terceirizadas, precarizar os serviços desenvolvidos no ambiente escolar.

A alegação é:  atividades que não são pedagógicas […] podem ser transferidas para uma OS, o que gera uma gestão mista: parte feita pelos próprios servidores, pelos profissionais do magistério […] e uma parte pelas OS. O que é bastante estranho é porque o modelo de OS é de que você tenha uma OS especialista. Ela é qualificada para absorver uma parte da atividade do Estado. Então, se eu qualifico uma OS para atuação na área de educação, não faria muito sentido […] passar para ela atividades não-pedagógicas. É uma subversão, um pouquinho, do modelo que acaba tratando a OS, e o contrato de gestão, como uma certa terceirização e precarizando uma parte das funções, subvertendo um pouco o modelo original (STUCHI, 2019b).

O modelo de OS adotado põe em risco a democracia em escolas paraibanas.

[…] É a questão da sobreposição das instâncias […], em relação à gestão democrática das escolas, todas as suas instâncias, para que essa gestão aconteça pela própria comunidade escolar e, quando a gente tem uma organização social, eu tenho uma outra instância que toma uma parte das decisões sem passar por essas instâncias da gestão democrática.  Isso gera uma sobreposição de instâncias decisórias (STUCHI, 2019b). 

No âmbito da educação superior pública, a transferência de administração para organização social deixa em dúvida a autonomia das instituições federais de ensino superior (Ifes), que pode ser afetada, desrespeitando as instâncias democráticas, como ocorre com a experiência das OS na rede estadual da Paraíba.  “[…] Se a gente pensar que a ideia é transferir esse modelo para as universidades, fica claro aí nessa questão da sobreposição das instâncias uma perda de poder decisório em relação às atividades objeto do contrato de gestão com a OS" (STUCHI, 2019b).  

 

 Valdemar Sguissardi durante a palestra Alguns Desafios Atuais da Educação Superior no Brasil, na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul em Campo Grande  Foto: Arnor Ribeiro/ADUFMS, 4 maio 2018


Ifes  – Com todas as dúvidas sobre a eficiência, o controle e a função das OS, o Ministério da Educação (MEC) incorporou essa ideia de gestão ao Future-se, programa direcionado às universidades e institutos públicos federais. “As organizações sociais são entidades não-governamentais. Elas são privadas que substituem as organizações estatais” (SGUISSARDI, 2019). 

O então ministro da Administração Federal e Reforma do Estado (Mare), Luiz Carlos Bresser Pereira, sistematizou em meados dos anos 1990 a ideia de implementar as OS. 

Na União, os serviços não-exclusivos de Estado mais relevantes são as  universidades, as escolas técnicas, os centros de pesquisa, os hospitais e os museus  .  A reforma proposta é a de transformá-los em um tipo especial de entidade não-estatal, as organizações sociais. A idéia é transformá-los voluntariamente, em  “organizações sociais”, ou seja, em entidades que celebrem um contrato de gestão com o Poder Executivo e contem com a autorização do parlamento para participar do orçamento público  (1996: 286, apud SILVA JR.; SGUISSARDI, 2001, p. 31-32, grifos dos autores). 

Estudioso de temas relacionados à educação superior, à política de educação superior, à reforma da educação superior, ao público e ao privado na educação superior, Sguissardi explica em que consistia a proposta da década de 1990 e o intento de FHC em desobrigar o Estado de gerir as Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes). “No caso do Bresser Pereira, lá em 95 [1995], ele pretendia que cada universidade se transformasse em uma organização social, que livraria o Estado da obrigação constitucional de manter as universidades plenamente” (2019). 

A proposição de gerência de universidades públicas por OS tinha na era FHC intenção de livrar, em todos os níveis, o Executivo federal da obrigação estabelecida na  Constituição Federal de 1988  , sob argumentação da radical não-interferência do poder público.

…Descentralização dos serviços sociais do Estado, de um lado para os Estados e Municípios, de outro, do aparelho do Estado propriamente dito para o  setor público não-estatal.  Esta última reforma se dará através da  dramática  concessão de autonomia financeira e administrativa às atividades de serviço do Estado, particularmente de serviço social,  como as universidades, as escolas técnicas, os hospitais, os museus, os centros de pesquisa, e o próprio sistema de previdência.  Para isso, a ideia é de criar a possibilidade de essas entidades serem transformadas em  “organizações sociais”  (BRESSER PEREIRA, 1995: 13, apud SILVA JR.; SGUISSARDI, 2001, p. 33-34, grifo dos autores).

A exemplo do governo atual, que esconde dentro do Future-se o intento de Estado mínimo, FHC justificava a transferência da gestão como forma de “tornar administração pública mais flexível e eficiente [e] reduzir seu custo” (BRESSER PEREIRA, 1995: 8, apud SILVA JR.; SGUISSARDI, 2001, p. 32). No tocante às universidades e institutos federais públicos essa premissa choca-se com a atual Carta Magna.   


REFERÊNCIAS 


KREBS, Fernando Aurvalle; RORIZ, Carla Brant Corrêa Sebba; AVELAR, Mário Lúcio de; BARBOSA, Maisa de Castro Sousa. Referência : ICs 201500469399 e 201500468202. Goiânia: MP-GO; MPC-GO; MPF, 16. fev. 2016. Disponível em: <http://www.mpgo.mp.br/portal/arquivos/2016/02/16/17_36_26_430_Recomenda%C3%A7%C3%A3o_MPE_MPF_e_MPC_suspens%C3%A3o_edital_OSs_nas_escolas.pdf>. Acesso em: 7 nov. 2019. 

ROSA, Cristina Juíza acolhe pedido do MP e suspende edital de chamamento de OSs para assumir gestão de escolas.   Assessoria de Comunicação Social do MP-GO , [GOIÂNIA], 2 jan. 2017. Disponível em: <http://www.mpgo.mp.br/portal/noticia/juiza-acolhe-pedido-do-mp-e-suspende-edital-de-chamamento-de-oss-para-assumir-gestao-de-escolas#.XcMMbTNKi5g >Acesso em: 6 nov. 2019. 

SANTANA, Vitor. Justiça determina suspensão de edital para escolha de OS na educação. G1 Goiás , 2 jan. 2017. Disponível em:  <http://g1.globo.com/goias/noticia/2017/01/justica-determina-suspensao-de-edital-para-escolha-de-os-na-educacao.html>. Acesso em: 7 nov. 2019. 

SGUISSARDI, Valdemar. Organizações sociais. Entrevista concedida a Arnor da Silva Ribeiro, gravação de áudio via WhatsApp.   Assessoria de Imprensa da ADUFMS Seção Sindical ANDES Sindicato Nacional, 10 set. 2019. 

SILVA JR., João dos Reis; SGUISSARDI, Valdemar. Novas faces da educação superior no Brasil. 2.ed. rev. São Paulo: Cortez; Bragança Paulista: USF-IFAN, 2001. 

SOUZA, Fábio Araujo de; FLORES, Maria Marta Lopes. Organização social de educação e seu financiamento: a nova panaceia para educação de Goiás? Revista    HISTEDBR On-line, Campinas, v. 18, n. 3 [77], p. 798-825, jul.-set. 2018. Disponível em: <https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/view/8651788/18616>. Acesso em: 6 nov. 2019. 

STUCHI, Carolina Gabas. Organizações sociais. Entrevista concedida a Arnor da Silva Ribeiro, gravação de áudio via WhatsApp.   Assessoria de Imprensa da ADUFMS Seção Sindical ANDES Sindicato Nacional , 18 set. 2019a.

 ______. Organizações sociais. Entrevista concedida a Arnor da Silva Ribeiro, gravação de áudio via WhatsApp.   Assessoria de Imprensa da ADUFMS Seção Sindical ANDES Sindicato Nacional, 7 nov. 2019b.