23 ago, 2021
Na última semana, fomos surpreendidos pela fala do Ministro da Educação sobre crianças especiais colocadas em salas com crianças “normais” atrapalharem o aprendizado dessas últimas. Como pai de uma pessoa especial não posso me calar. Escrevi o texto abaixo e compartilho com vocês. Aproveito para deixar claro e cristalino que não se trata de uma posição político-partidária. São apenas palavras de um pai.
Sr. Ministro da Educação Brasileiro
Tomo a liberdade de me apresentar ao senhor. Sou graduado em medicina, com residências médicas em clínica médica e em ginecologia e obstetrícia. Também tenho mestrado em ginecologia e obstetrícia e doutorado em medicina. Atualmente sou médico e professor do Curso de Medicina da Faculdade de Medicina da UFMS. Toda minha formação, acadêmica, da pré-escola ao doutorado, ocorreu na escola pública.
Para os padrões educacionais do Brasil, sempre fui considerado um bom aluno e minha autoavaliação me permite concluir que tenho certa facilidade para aprender. Isto, de alguma maneira, tornou-me uma pessoa arrogante, presunçoso, intransigente e impaciente com as características do aprender de cada um dos meus colegas. Enfim, deixava essa arrogância e presunção, associados ao complexo de divindade, falar mais alto. Faço essa introdução não para me vangloriar, mas para dar o devido valor para a narrativa que se segue.
Mas a vida, como no dito popular, nos coloca de joelhos, nos curva diante de sua grandeza e traz nossa pequenez à luz do dia. Em 30 de abril de 2005, nascia nossa terceira filha. Apressada, veio prematura e, essa prematuridade deixou suas marcas. MC é, hoje, uma mocinha de 16 anos, linda em todos os aspectos. Sua idade cronológica contrasta, entretanto, com suas necessidades e dependências. MC é dependente dos nossos cuidados e de toda equipe que a atende e ama. Desculpa falar em amor para o Sr., porque talvez esse sentimento lhe seja muito abstrato e esteja muito distante de sua realidade.
MC nasceu em um hospital público federal e foi salva pelo SUS e pelos funcionários públicos que lá trabalham. Ela frequenta a escola pública. Não porque nos faltem recursos financeiros para custear escola privada, mas sim, pelos méritos e qualidades da escola pública e gratuita. Os profissionais que lá trabalham exercem seu oficio com amor (lá vem eu falar de amor para o Sr. novamente).
Desde seu nascimento, tivemos, temos e ainda teremos que ensinar tudo para MC. Absolutamente tudo. Tivemos que, por outro lado, aprender a respeitar o seu tempo. Perdão, mais uma vez, por abordar outro sentimento que possa não fazer parte do seu cotidiano, do seu modus vivendi — o Respeito.
Rapidamente concluímos que nós poderíamos ter o relógio, o calendário, mas é MC a dona do tempo, do seu tempo. Aí está um dos muitos ensinamentos que MC nos deu e dá. Opa, introduzi mais um conceito novo para o sr. MC é, a despeito de todas suas características especiais, capaz de ensinar e não somente aprender. E nós, também, não somente ensinar, mas aprender. E aprender exige humildade. Ensinar e aprender é uma troca.
A pergunta natural que se segue é: o que aprendemos com MC e fomos ensinados por ela? Difícil colocar em palavras, mas o amor incondicional, o respeito às diferenças e limites dela e nossos, o exercício da tolerância, a perseverança e persistência para conquistar cada pequena grande vitória, a ingenuidade pura da criança, o respeito ao tempo, o aprender novas e novas ferramentas para ensinar e aprender seriam bastantes, mas há que ressaltar que MC nos ensinou a humanidade, a compaixão e o amor. A convivência com MC nos tornou pessoas melhores. Tornei-me um médico melhor, um professor melhor. Se não melhor, com certeza, menos ruim.
Se nós adultos aprendemos com a convivência com um ser humano maravilhoso ainda que diferente de nós, façamos o exercício de imaginar o que as demais crianças e a própria escola pode aprender também.
A escola, tradicionalmente, tem dificuldade de trabalhar com os alunos que estão nos extremos da curva. Os alunos classificados como bem-dotados assustam os profissionais da educação tanto quanto os alunos com dificuldades os amedrontam e paralisam. A convivência com esses alunos, para dizer o mínimo, ensinaria a escola a ser verdadeiramente escola, um local de aprender, de trocar. Como já dito acima, aprender e ensinar é uma troca.
E para as demais crianças, ditas normais, haveria algum ganho? Caso essas crianças aprendessem o amor, o respeito, a perseverança, a persistência, que aprender é uma troca e que para a troca há de haver o outro, e que, ainda que esse outro seja diferente do que nossa presunção considera como normal, precisamos do outro. Se a convivência com pessoas como MC tornar nossas crianças pessoas melhores, teremos uma família melhor, uma escola melhor, uma sociedade melhor, governantes melhores e, consequentemente, um país melhor.
Pessoas como MC podem nos ensinar muito. Pessoas como MC têm que lutar e vencer uma batalha diária, têm que se superar a cada momento para comer, andar, vestir, falar e, principalmente, vencer o preconceito, a arrogância, a “diversidadefobia”, a discriminação de muitas pessoas como o sr. Mas quando isso tudo emana de uma instituição do país, no caso específico o Ministério da Educação, o fato se reveste de requintes de crueldade e de importância ímpar, senão vejamos.
O Estado (isso mesmo, o Sr. não é pessoa física nesse cargo. O Sr. é o Estado Brasileiro), que deveria proteger essas pessoas indefesas, agora as ameaça. Ameaça com discriminação, com a segregação, com o isolamento. (Puxa, finalmente, falei em valores que o Sr. conhece). Ademais, em mensagem subliminar, quer ensinar essa barbárie as nossas crianças. Isso é inaceitável. Devemos ensinar nossas crianças a serem pessoas melhores. A inclusão ensina a todos um pouco de humanidade. A segregação ensina a discriminação, a intolerância, o ódio. Olha aí os termos que lhe tornam o texto familiar.
Dito isso, resta-me concluir que precisamos e o Brasil precisa de pessoas melhores, que no futuro possam governá-lo de forma mais humana. Abra sua mente e coração ministro para que possa enxergar o próximo na plenitude e na grandeza que só a diferença e o respeito à diversidade pode proporcionar ao ser humano. E na falta de maior criatividade, recorro ao saudoso Chico Anysio, travestido no seu personagem mais tenebroso e sinistro (Bento Carneiro o Vampiro Brasileiro) para concluir o texto da mesma maneira que o comecei. Ministro da educação brasileiro……
Wilson Ayach
Pai da Maria Clara
Wilson Ayach é médico obstetra, professor da UFMS, trabalha no HU e é pai de Maria Clara.