16 dez, 2021
Por Vitor Wagner Neto de Oliveira*
Se é fato que as Universidades brasileiras careciam ainda de um projeto político e
pedagógico verdadeiramente democrático e socialmente referenciado, também é evidente que
essas instituições são fruto de conquistas arrancadas com muita luta da sociedade brasileira,
especialmente a partir do fim da década de 1970. Essas Instituições são responsáveis pelo ensino e
pesquisa no Brasil, em ações desenvolvidas no chão das salas de aula e laboratórios. Espaços em
que se relacionam graduandos, pós-graduandos, docentes-pesquisadores recém ingressos e outros
com longa experiência. Essa rica convivência interna à comunidade acadêmica permite uma relação
dinâmica desta com a sociedade externa por meio da extensão, dos serviços prestados, e do
conhecimento aplicado à melhoria da vida da população brasileira.
Essas conquistas correm sério risco pelos cortes de verbas e ataques constantes à
Universidade Pública, que não vêm de agora, mas que a partir de 2019 se acirraram passando a
constituir um projeto de Governo. A autonomia universitária, parte do rico legado de conquistas
pretéritas, foi sempre uma garantia de freio aos ataques dos governos de plantão, especialmente
quanto à organização interna da administração e do currículo. Mas, mesmo aí estamos perdendo
terreno, e isso vem se dando, porque, convenhamos, muitos de nossos colegas, especialmente nas
administrações universitárias, acompanham, pari passu, o projeto autoritário do governo atual.
A administração da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul vem implementando, a
passos largos, um projeto de desmonte do caráter democrático da Universidade Pública até aqui
construído por gerações passadas e do presente. O autoritarismo na administração da Instituição é
implementado seguindo dois movimentos: A reestruturação de órgãos colegiados, com o
predomínio de representantes da administração em detrimento dos segmentos docentes, técnico-administrativos e discente; e o aligeiramento das decisões de temas fundamentais que chegam aos
órgãos deliberativos sem debate na comunidade.
Último exemplo disso é a proposta de alteração do Regimento do Conselho de Graduação
(órgão responsável por deliberar acerca de assuntos didático-pedagógicos). O Pró-Reitor de
Graduação, pessoa indicada pelo Reitor, é o presidente deste Conselho. E dele fazem parte ainda
diversos funcionários que ocupam cargos de confiança do Pró-Reitor e Reitor. Não bastasse a
disparidade na representação da comunidade neste Conselho, em que alunos, por exemplo, têm
apenas um representante e técnicos-administrativos também apenas um, a última proposta de
alteração apresentada pela administração é de que o presidente do Conselho (o Pró-Reitor) tenha
o poder de veto de qualquer tema aprovado pelo Conselho. Ou seja: perde na votação, mas pode
vetar, numa leitura de presidencialismo com formas absolutistas.
Esses movimentos de destruição de espaços democráticos buscam dar garantias à
implementação de um projeto muito maior, que é o de reestruturação da educação brasileira,
acoplando-a aos ditames do tecnicismo, esvaziando os conteúdos teóricos e científicos. Nos quase
dois anos de Pandemia de COVID-19 a Reitoria viu, em meio à esta tragédia da história humana,
uma oportunidade de “passar a boiada”, no que se refere às mudanças estruturais. A UFMS se
vangloria de ter sido uma das pouquíssimas instituições a impor o trabalho remoto no segundo dia
de decretação da crise sanitária (dia 17 de março de 2020). Utiliza dessa “experiência” para tentar
agora impor até 40% de ensino a distância nos cursos presenciais. Nessa “experiência” de trabalho
remoto, a administração, sarcasticamente, não contabiliza, por exemplo, o adoecimento de
funcionários e alunos, a desistência acadêmica, os graves problemas de desenvolvimento do
conhecimento, entre inúmeros outros problemas derivados dessa imposição do ensino remoto, de
cima para baixo.
O único olhar da administração é para os números de entrada de alunos (porque
isso significa mais verbas, das escassas que existem) e economia de custos. Não interessa se os
alunos conseguirão permanecer na universidade, se o ensino aí produzido é de qualidade e pouca
importância é dada à excessiva carga de trabalho de docentes e técnicos com a modalidade híbrida.
Outro ataque frontal à autonomia didático-pedagógica dos colegiados mais básicos da
Universidade, aqueles que estão no contato direto com professores e alunos, e à especificidade dos
cursos, regiões, histórias, é a imposição da unificação de currículos de cursos homônimos.
A UFMS está em oito cidades do Mato Grosso do Sul. A Instituição tem sua história ligada ao
desenvolvimento de cada região em que está inserida. Os cursos de graduação se firmaram nesses
municípios a partir da relação com a comunidade local, e pelo corpo docente que aí se estabeleceu.
A diversidade cultural, ambiental, econômica e social do Estado é matéria prima dos estudos
desenvolvidos por estudantes e professores nos diversos campi da UFMS, que contribuem para o
desenvolvimento local e regional. Homogeneizar ou unificar os currículos dos cursos homônimos, é
um ato burocrático e calculista que desconsidera essa riqueza e passa por cima da autonomia dos
colegiados na construção curricular.
A escalada autoritária na UFMS vem com discurso democrático de dar liberdade para que os
alunos possam ter maior mobilidade entre cursos, sem prejuízo do currículo, e possam montar seu
horário de estudo com a modalidade a distância. Mas, para quem está vivendo o trauma da
experiência do ensino a distância forçado pela pandemia, sabe bem que a isca é artificial, mas os
resultados, se isto se efetiva, podem ser concretos, desastrosos, tanto para os cursos e os campi,
especialmente do interior, os quais, com certeza, serão ainda mais sucateados, com o
“enxugamento” da máquina pública e o fim de concursos, especialmente para efetivos, já que se as
disciplinas são homônimas e os cursos 40% EaD, então qualquer curso, de qualquer lugar, poderá
resolver o problema.
Essas são questões fundantes para a discussão de que Universidade queremos para a
geração que aí está e para aquelas que virão. Os governos e administrações não são eternos,
passam, mas a Universidade pública, gratuita e referenciada, necessita permanecer como o lugar
de produção do saber que se constrói, de forma crítica, humana, em todas as áreas. Este é o nosso
desafio no enfrentamento ao autoritarismo!
Três Lagoas-MS, 14 de dezembro de 2021
*Vitor Wagner Neto de Oliveira possui graduação em Licenciatura Plena em História pela UFMS (1997), mestrado em História pela PUC-RS (2000) e doutorado em História Social do Trabalho pela Unicamp (2006). Pós-doutorado em Ciências Humanas e Sociais na Facultad de Filosofia y Letras da Universidad de Buenos Aires (2018-2019). Atualmente é professor Associado da UFMS, Campus de Três Lagoas (CPTL), onde coordena o Núcleo de Documentação Histórica.