Assédio: em vez de alertar, campanha da UFMS reforça preconceitos e contraria dados

A gestão da UFMS lançou, no dia 16 de março, sua campanha de divulgação de políticas de prevenção e enfrentamento ao assédio sexual e moral. O texto se baseou na cartilha divulgada pelo Governo Federal sobre o tema. No entanto, as peças publicitárias divulgadas trazem ilustrações que, em vez de contribuir no debate sobre o tema, replicam preconceitos e estereótipos negativos em relação a grupos marginalizados.

No card que diz respeito ao assédio sexual, a ilustração traz a representação de uma mulher puxando um homem pela gravata em um ambiente de trabalho. Embora haja casos de homens assediados sexualmente, este é um problema ligado à estrutura patriarcal da sociedade e, portanto, na ampla maioria dos casos é praticado por homens contra mulheres.

Não é a primeira vez que a gestão UFMS, por meio de seu setor de comunicação, traz abordagens do tipo. Em 2019, uma campanha da instituição trouxe a imagem de uma mulher negra tocando os ombros de um homem branco com expressão de incômodo. A mulher é acompanhada da fala “Parece tenso, eu te faço uma massagem”.

Em outra, um homem negro encosta a mão na coxa de um homem branco. “Posso abonar aquela sua falta com uma presença em outro lugar”, diz o personagem negro, supostamente representando um professor assediador. Há ainda a figura de uma mulher amarela dizendoa um homem branco: “Você vai ter que terminar isso hoje. Não me interessa se vai perder sua prova”. Após a repercussão negativa, as imagens da campanha de 2023 foram retiradas, mas as de 2019 permanecem.

Na contramão dos dados

A professora Dra. Jacy Curado afirma que as imagens divulgadas trazem uma inversão da realidade. “Quem é dominante no sistema patriarcal são homens, principalmente brancos de classe média, e a imagem inverte isso. Coloca uma mulher assediando um homem. Isso não corresponde à realidade, aos dados, ao sistema de dominação. Pegaram as vítimas e colocaram como abusadores”.

De acordo com Jacy, a ilustração faz com que o grupo majoritariamente vitimado seja representado como o que pratica a violência. “Se formos ver os dados sobre assédio, violência sexual e de gênero, eles são marcados pela relação de dominação, com base patriarcal. Pode acontecer assédio de uma mulher em relação a um homem, e deve ser punido, mas isto é uma exceção”.

O professor Dr. Guilherme Passamani concorda com o apontamento e detalha a problemática desta representação. “É claro que eventualmente uma mulher pode cometer assédio sexual contra um homem, mas na grande maioria dos casos, são os homens que praticam contra mulheres. Então, por um lado, a imagem sugere a mulher num lugar que ela quase nunca ocupa; e por outro, protege o homem, que é em grande medida o causador do assédio sexual”.

De acordo com levantamento do serviço de recursos humanos Mindsight, realizado em 2021, mulheres sofrem três vezes mais assédio sexual no trabalho do que homens, embora 97% das vítimas não denunciem. Das 11 mil pessoas consultadas em todo o Brasil, 76% relataram que foram assediadas por homens.

No card sobre assédio moral, um homem negro é representado enquanto chefe abusivo. Sobre esta ilustração, Passamani pontua que “é claro que, eventualmente, pode haver um homem negro num lugar de poder. Mas quantos homens negros conhecemos em lugar de poder e que, estando nesse lugar, promovem assédio moral?”.

A professora Dra. Eugênia Portela aponta que a imagem traz uma relação sem respaldo na realidade. “O que a gente vê nas imagens é um homem negro cometendo assédio moral, quando na verdade, sabemos pelos dados estatísticos que, dificilmente, homens negros chegam a cargos de chefia. E o mapa da violência de gênero mostra que a maioria que comete assédio moral e sexual é de homens brancos que ocupam esses cargos”.

De acordo com Eugênia, “nota-se completamente a ausência do letramento racial de quem fez essas imagens, além do racismo institucional, que é esse racismo manifestado por meio ação ou omissão dos gestores”.

A pesquisa “Racismo no Brasil”, encomendada pelo Instituto Locomotiva, concluiu que, em 2021, apenas cerca de 7% das pessoas em cargo de chefia no Brasil eram pretas, o que contrasta com o levantamento da agência Catho, segundo o qual, 38,7% das mulheres brasileiras já passaram por assédio moral no trabalho. Já a pesquisa do portal Vagas conclui que 52% dos profissionais de ambos os gêneros já foram assediados moralmente. A conclusão é de que, mesmo que todos os chefes negros do Brasil praticassem o delito (o que não ocorre), ainda representariam minoria nos casos.

Guilherme Passamani também pontua que a ilustração retrata homens negros como se fossem pessoas que abusam do poder quando o alcançam. “É como dizer que homens negros têm facilidade de acessar instâncias de poder, o que não é verdade, e que estando lá usam disso para praticar assédio moral, o que também não é verdade. Quem está nesse lugar constantemente e faz isso são homens brancos”.

O pesquisador afirma que a abordagem distorce a realidade, além de tirar a responsabilidade de grupos que costumam praticar tais delitos. “Produz uma falsa ideia, manipula a realidade, porque protege grande parte das pessoas que promovem assédio moral, que são homens brancos em posição de poder”.

Jacy Curado explica que as linguagens constroem a percepção das pessoas sobre os fatos e que, por isso, ilustrações como as citadas prestam um desserviço à sociedade. “A imagem é uma linguagem muito potente. Mais uma vez um caso de inversão, já que no sistema racial, o dominador é o branco. Colocam o negro, que é vítima do racismo, como sendo abusador. E no final uma mulher negra como homofóbica”.

Em outro card, cujo tema é a homofobia, a imagem produzida é a de uma mulher negra e gorda praticando o delito contra um homem branco. Eugênia Portela explica que esta abordagem também é problemática e não reflete a realidade. “Sabemos que quem pratica a homofobia não são pessoas negras ou gordas, mas majoritariamente homens brancos e mulheres brancas”.

Guilherme aponta que a imagem, além de trazer uma interpretação falsa da realidade, aprofunda outros preconceitos. “É uma imagem gordofóbica. Passa a falsa impressão de que a LGBTfobia é praticada por esses tipos de corpos. Claro que podem ser, mas outra vez, protege quem efetivamente é homofóbico na sociedade”.

Reprodução de estereótipos

Mesmo que sem respaldo em fatos, as situações representadas nas ilustrações reproduzem estereótipos presentes na sociedade há séculos. No livro “Mulheres, raça e classe” (1981), Angela Davis recorre a escritos do pensador ex-escravizado Frederick Douglass, ao abordar o mito do “homem negro violento”.

De acordo com Douglass, em passagem citada por Davis, “os tempos mudaram, e os acusadores dos negros acharam necessário mudar também. Eles foram obrigados a inventar novas acusações para se adaptar aos tempos. As velhas acusações não são mais válidas”. A acusação válida era o estupro, o que iniciaria uma onda de linchamentos de homens negros com base em uma suposta “tendência à violência”.

A ilustração da campanha da UFMS a respeito do assédio moral, na qual se representa um homem negro violento, evidencia a reprodução deste mito, presente em todas as ex-colônias que recorreram à mão de obra escravizada. O mesmo ocorre na ilustração do card sobre homofobia, que reproduz o mito racista de que mulheres negras seriam “raivosas”.

Sobre este tema, a socióloga jamaicana Shirley Tate afirma, no artigo “Descolonizando a raiva: a teoria feminista negra e a prática nas universidades do Reino Unido” (2018), que “quem constrói a mulher negra raivosa é o pensamento colonial da branquitude e os agenciamentos racializantes produzidos pela dificuldade que pessoas brancas têm de responsabilizar-se por sentir raiva”.

Soluções

Jacy Curado propõe o diálogo entre a equipe de comunicação da universidade e pesquisadores do tema, para evitar novas reproduções de discursos preconceituosos. “Caso façam uma assessoria, convidem os professores, estamos dispostos a contribuir. Temos muitos especialistas de renome nacional na UFMS para poder contribuir”, finaliza.

Eugênia Portela sugere que uma formação específica sobre o tema impediria que problemas como este ocorressem. “Se saiu da assessoria de comunicação de uma universidade, e ainda colocam a logo do Governo Federal, da CGU no mês da mulher, com esse monte de estereótipo, mostra que os servidores precisam fazer curso de formação e que a gestão, o Conselho Universitário e a Procuradoria precisam urgentemente combater o racismo institucional na UFMS”.

 

Texto: Norberto Liberator (Assessoria de Comunicação)

 

 


Comentários

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